quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Eu-caderninho: mês da comunicação alternativa

É libertador entender algumas coisas. Nomear é mesmo preciso para dar dignidade e contorno às existências: "o nome das coisas desconforta / mas não ter nome / é coisa de coisa morta".

Hoje sempre que necessário só participo de situações sociais complexas por escrito. Consulta médica? Por escrito. Psicoterapia? Por escrito. Conversas difíceis e densas? Por escrito. Discussão e organização de tarefas? Por escrito. Entre tantas outras. Comunicação alternativa salva vidas, salva relações, salva sujeitos do afogamento na normose. Bom de verdade é sermos nós mesmos – isso é o que tem desenhado o sorriso largo do meu rosto depois de uma vida cheia de confusão e dor.

A escrita é minha vida, é minha melhor forma de expressão. É por ela que melhor compreendo o mundo e melhor sou compreendida. Então, se um dia você me encontrar por aí e eu puxar meu caderninho para anotar as respostas às perguntas que você me fizer, não sinta pena nem pense que estou sofrendo ou que "regredi". Eu apenas estou aprendendo a respeitar meus limites e ser eu mesma sem medo de ser feliz. E olhe: eu me sinto muito confortável com isso! 😍

Falar me requer um esforço físico e mental abissal. A quantidade de sinapses aumenta absurdamente, as assembleias neuronais não têm paz. O excesso de sincronizações neuronais causa um estresse incalculável, além de exigir uma hipervigilância sobre-humana para que o corpo acompanhe a mente e, assim, a superfície das palavras mantenha-se fiel à sua substância – o que nem sempre consigo. Recentemente, esse esforço chegou ao ponto de me levar a crises de dissociação e crises de ausência. Não quero mais. Meu corpo disse: chega!

Como todos que me conhecem sabem, eu posso falar com muita desenvoltura, mas as consequências são graves e todas minhas e isso nem todo mundo vê ou sabe. É algo que não quero mais. Por outro lado, posso falar também com muita dificuldade e acabar ferindo a mim mesma e às outras pessoas, pois há momentos em que os colapsos neurológicos não podem ser contidos por maior que seja a habilidade de vigiar e mascarar e performar. E isso eu também não quero mais. Então, tenho falado cada vez mais dos meus modos, nos lugares onde me sinto confortável e quando isso não viola meus limites, ou seja, se houver condições adequadas à minha natureza.

Pra quem convive comigo e quer entender melhor, é bem simples, vou dar alguns exemplos mas certamente vai além: não me exija falar demais, não me faça muitas perguntas seguidas, me dê um tempo para responder, não espere que eu atenda o telefone, não estranhe se eu só souber conversar longamente sobre meus hiperfocos. Forçar algo diferente me faz mesmo muito mal, e eu não quero mais cultivar minhas próprias dores. Quando elas vierem, que seja pela inevitabilidade da caminhada, não pela massacrante e vã tentativa de viver sendo quem eu não sou.

Vou sair na rua sempre com meus plugs de ouvido. Vou fazer ecolalia no banco. Vou girar à espera do Uber, vou pular e saltitar atravessando a pista, vou rir sozinha enquanto caminho, vou falar e gesticular sozinha enquanto almoço, vou me desviar da rota pra olhar as flores, vou dançar de fone de ouvido nas filas, vou virar estrelinha no meio do shopping, andar na rua parecendo bailarina. Tudo que for preciso pra me regular e ficar bem. Assim tenho feito e continuarei fazendo.

Não se envergonhe por mim nem pense que surtei. Muito menos se dê ao trabalho de se incomodar com os olhares dos outros. Se fosse pra me preocupar com isso, eu não saía de casa. Mas se quiser ir por esse caminho, tudo bem. Pegue uma senha e entre na fila que ela é bem grande kkkkkkkkkk... Mas aguarde sua vez pra poder me criticar sem passar na frente dos coleguinhas, viu? 😝

E caso você receba um bilhetinho meu ou eu te entregue meu caderninho pra ler, tenha certeza: estou falando do meu melhor modo com você! Portanto, valorize.

🤸🏻‍♀️💖

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Texto inspirado em posts da maravilhosa Carol Souza.


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05.10.2021

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Papai raspou meu cabelo

Ele viu, ele viu, ele viu. Eu acordar de madrugada pra ter crises. Crises. Crises.

O cabelo, a sensação do cabelo na cabeça. O toque do cabelo na cabeça. O calor. A quantidade de fios. O movimento dessa quantidade de fios tocando a cabeça. Tão agressivo à minha pele quanto certos ruídos ao meu ouvido. O sensorial e seus paradoxos. Vivi isso a vida toda e precisei me contentar com toda sorte de interpretações equivocadas e esdrúxulas sobre meus comportamentos "disruptivos".

Sabem como é patético e engraçado tudo isso? Sim, engraçado. Hoje, depois de muito desencontro ao tentar não ser como sou, me aceito e posso até encontrar graça em ser eu mesma. Mas tudo isso já foi só devastações, desexplicações e desesperanças.

Acordar pra ter crises porque há cabelo na cabeça (e não se pode ter controle sobre as sensações que isso causa). É desesperador, e é patético. Já não posso dizer que sofro com isso, pois na verdade rio. Quero dizer, sofro a crise; mas não lamento ser assim. Sou, entendo, aceito e, sim, rio. Antes, durante e depois da crise. Antes e depois, rio gostosamente de mim; durante, rio de desespero. E peço: pai, raspa minha cabeça, pai? Eu só quero dormir em paz.

[...]

Manda buscar a máquina, lava os óculos, manda eu puxar a cadeira e pergunta como mexe nisso. É simples, segura aqui, regula aqui, liga aqui. Vai passando. Tudo por um, tudo igual, só cortar.

Duas noites sem crise.

Hoje, madrugada, escrevo tranquila, leio. Contemplo. O velho apreço pela reflexão noturna com suavidade me visita.

De dia, meu hiperfoco: espalhar e enfileirar textinhos.

De noite, poesias, crônicas e listas.

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17.07.2020, madrugada

terça-feira, 2 de outubro de 2018

vem ser

ei
vem ser bonita
vem sorrir sua verdade que tá escondida

o caminho é pra dentro
tome tento!
não adianta olhar a grama do vizinho

dá um risinho
confessa no chuveiro aquele desejo esquisito
canta pros pássaros seu sonho bandido

conta o tempo e os passos
traça a rota
inventa o destino

vem ser você
autêntica
esplêndida

sei que dá medo
mas pense um pouquinho
vencer não é questão de não perder

perder-se também é caminho

vem ser você mesma
inteira
do seu jeitinho

intuitivo

~~
escrito em 08.08.18

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Grande guerreiro amoroso

com amor, para o Mar, a Rosa e a Estrela

Dentro do moço tímido
havia um sorriso tão rico
escondido em escombros
de pensamentos contidos

Um dia uma singela roseira
trouxe vida ao cantinho
do moço esquisito
de olhar fugidio

Sua ternura era muita
e com amor e labuta
ele e a roseira ajeitaram a bagunça
que ofuscava o sorrir

O brilho cresceu e uma estrela nasceu
o moço antes perdido
agora era inteiro um sorriso
de olhos puros, úmidos e vivos

A estrela fez um ninho
no peito do moço
que desabrochou amoroso
corajoso e choroso

Aos olhos do mundo - que alvoroço!
a mudança do mar-moço
era um desvio horroroso
de menino imaturo e teimoso

Mas como pode ser errado
um sorriso de luz de estrelas desaguar
em olhos de abraço apertado?
Só mesmo num mundo quadrado

O broto de vida da rosa aguerrida
é menina-florida sagaz e sensível
que teima em reexistir
fazendo só o que gosta - maravilhosa!

Ousada e sabida
ela desenha a vida sem medo de colorir
vermelho, rosa ou preto
é ela quem vai decidir

Independente da torcida
a flor vai parir estrela castanha
e o riso do moço
florir

(elo eterno com o dom de existir)

domingo, 25 de março de 2018

Parto

Em mar-ilha dia desses choveu
forte como as cólicas de um dia infeliz

Não se viu raio de sol
mas se sabia que era ele que alumiava o dia
Sem ironias o verdejante da grama sorriu
cheirando a flores passadas

Na curva onde o sol nunca pisa
explodeliram úmidas fertilidades
Tantos ontens bagunçados no breu
(seria a vida o eterno organizar de gavetas?)

A dor que rasga não tem vencimento

Ela sente e vai
confiante no beijo do vento
em seus cachos dourados

Tato aguçado
tino atento
é denso o silêncio de quem se recria

Até que o berro irrompe e ela entende
nascer é verbo intransigente
só o nome lhe deixa existir

Substantivo concreto materno

Todo parto sangra
nenhum é solitário

quarta-feira, 21 de março de 2018

Vidavenida

Volta e meia eu me pego
esperando o sinal verde da vida
pra seguir o meu caminho
como venho planejado

Eu me esqueço no entanto
dos imprudentes e dos não habilitados
sem falar dos que compraram
a carteira ilegalmente no mercado

Mesmo sem intenção esse povo despreparado
assume os riscos e segue sem cuidado
causa acidentes, transtornos, sustos
dor e muito estrago

Agora que tô mais esperta
olho pra todos os lados
se vier na contramão, eu desvio
– vá em paz, mal assombrado!

Mas se triscar minha lataria
eu paro, registro, não sossego

Tá avisado: vai arcar com o reparo!

sexta-feira, 16 de março de 2018

Se

Se não joga bola
mas já me ganhou de goleada
Parece palavra curta
mas na cabeça faz curva endiabrada

Se me perco na rota
entre a conjunção e a interrogação
é só uma a condição:

chovem infinitos destinos trágicos
nas minhas cabeças – tortas de tanto tentar
enxergar na frente das horas

Se socorro eu grito
e a quem me sabe me dirijo
não piro: acho sem saber
amor pelo meu humano ritmo

Mergulho no medo
e nem saio molhada
mas entro na chuva
e danço pelada

Quando o sol me abraça
o arco-íris me encontra
de alma lavada serzida e grata

Não mais assustada